segunda-feira, 15 de outubro de 2012

ESTAVA ESCRITO.




Há muito tempo, uma instituição chamada Clube do Professor Gaúcho, que nem sei se ainda existe, contratou um “vidente” para atender o professorado de Alegrete. Ele se hospedou no Real Hotel e as filas para consultá-lo dobravam a esquina. Eram professoras (só me recordo de ver mulheres) querendo antever seu futuro e o de sua família e certamente com outros tipos de perguntas que a minha cabeça de recém ginasiana não ousava atinar. Eu e Jocelém, minha fiel escudeira, nos postamos na tal fila, ainda uniformizadas, num misto de curiosidade e vontade de andar de elevador. Lá pelo meio-dia, arriscando um castigo por atrasar o almoço, fomos atendidas pelo tal senhor. Não gostei dele, porque foi logo errando a primeira das minhas questões: - o que eu seria quando crescesse. “Professora”, foi logo dizendo e aquilo me soou como uma praga por termos nos metido entre os adultos e atrapalhado sua refeição. Acertou no casamento e no número de filhos, entretanto a sentença da profissão deixou-me muito irritada. Menosprezei-o para todas as colegas que não tiveram nosso atrevimento. Afinal, todo mundo sabia que eu seria médica ou advogada, sendo incentivada nessas áreas pelos professores.
Terminado o Ginásio, fui logo me matriculando no Científico e foi preciso uma verdadeira lavagem cerebral da família durante as férias para eu prestar o admissão à Escola Normal em segunda época. Mesmo assim, era para entregar o diploma aos pais no mesmo dia da formatura, para que eles o guardassem na gaveta. Aos poucos, apaixonei-me pelo curso e acabei desistindo do Científico no segundo ano, por falta de tempo e de motivação.
Aos quinze anos, já normalista,comecei a dar aulas particulares, para reforçar minha mesada espartana. Dona Maria Purcina me encaminhava alunos com dificuldades  de aprendizagem e eu cobrava de acordo com as posses da família deles. Obtive bons resultados e valiosa experiência.
No ano seguinte, ofereci-me para alfabetizar, de graça , no Presídio. As aulas eram nos sábados à tarde, depois de assistir aula no IEOA até o meio-dia. Ganhei muitos presentes, ouvi muitas histórias, presenciei muitas coisas, só não pude continuar porque as ruas até a cadeia eram muito desertas, eu ia a pé, sozinha e a pressão familiar foi mais forte que o meu ideal.
Alafabetizei muitas meninas que foram quase “dadas” como domésticas à família, só pela casa e comida. E, bem mais tarde, recebi o reconhecimento de algumas. Entretanto, continuava querendo ser médica ou advogada ... até que, no ano do vestibular, meu querido pai, patriarca desconfiado, sentenciou que eu deveria escolher um curso que tivesse em Alegrete, pois ele não me deixaria estudar fora.
Fiz Letras, formei-me na primeira turma de Licenciatura Plena da Fundação Educacional de Alegrete. O fato de ter sido aluna da dona Domingas e Maria Faracco, da dona Neuly, da dona Guita, do Pillar, da Lilá, do Néo, da Virgínia e de outros professores que vinham de Santa Maria garantiu-me base suficiente para ser aprovada em concorridas seleções para Mestrado e Doutorado, anos depois.
Nesses trinta anos de “pó-de-giz” ensinei e aprendi em dez escolas, sendo cinco em Alegrete, duas em Uruguaiana e três em Florianópolis, numa média de 300 alunos por ano, da primeira série do Ensino Fundamental à terceira do Ensino Médio. Acho que consegui ensinar até o que não sabia, ou sabia pouco, tal o didatismo e a genuína vocação descoberta pelo “vidente” do Clube do Professor. Muitas vezes Paraninfa e Homenageada, as emoções mais fortes foram diante dos telefonemas de alunos, aos prantos, acabando de ver seus nomes na lista de aprovados da Universidade, oriundos de escolas públicas, lendo livros emprestados e sem recursos para pagar cursinhos de preparação.
Hoje, os jovens têm mais problemas, menos base e bem menos disciplina. Estava na hora de esvaziar meu armário e cedê-lo a quem tem mais energia para lidar com eles. Trinta anos depois, recebo uma carta do Governador dizendo assim:
“Externo a minha satisfação de assinar Portaria concedendo-lhe o direito à aposentadoria. Aceite nosso reconhecimento pelos relevantes serviços que prestou à sociedade catarinense no exercício de sua função ... Obrigado pelo seu empenho e dedicação.”
Valeu a pena, portanto.
Continuo na Universidade e ensinando o que eu souber a quem desejar aprender, porque nunca nos aposentamos de uma verdadeira vocação.

 Florianópolis, 21 de março de 2006.



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